domingo, 25 de março de 2007

DO ESQUECIMENTO À MEMÓRIA: A restauração do Cemitério Israelita de Cubatão

Beatriz Kushnir
[Do esquecimento à memória: a restauração do cemitério israelita de Cubatão”. Jornal Resenha Judaica/Caderno Resenha Cultural, São Paulo, 2/5/1997, pp. 1 e 4]







Após quase três décadas de abandono, um cemitério considerado de párias está sendo restaurado e em breve será reaberto à visitação. Um local socialmente percebido como sagrado, por pertencer aos mortos, foi, nesse caso, por muitos identificado como a materialização de um pecado. Refiro-me ao cemitério israelita de Cubatão, que pertenceu a Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos (SBRI de Santos), que está sendo restaurado pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo Chevra Kadisha, em cooperação com a Prefeitura de Cubatão.
Ali estão enterrados cerca de 15 homens e 60 mulheres de origem judia que tiveram como ofício a prostituição e a cafetinagem no baixo meretrício santistas, onde atuaram até a década de 60. São elas as famosas polacas. As polacas deixaram há muito de serem personagens desconhecidos tanto da comunidade judaica como fora dela.
Há alguns anos venho estudando a história deste grupo, em algumas cidades do Brasil, e mesmo fora dele. Meu olhar buscou seus universos fora do espaço do baixo meretrício, seu local de trabalho, voltando-se para a seguinte questão: como um grupo marginalizado, tanto pelos legisladores da cidade como pela comunidade judaica, recriou redes de solidariedade e sociabilidade que lhes definiu uma identidade social e uma auto-imagem positivas?
Para tanto, era preciso abandonar opiniões e julgamentos pré-concebidos e deixar que elas mesmas narrassem suas histórias. O desejo de trazer a história desse grupo e de, principalmente, deixá-los falar, passou necessariamente por escolhas difíceis. Meu compromisso foi sempre o de respeitar as suas vontades. Seguindo esta trilha, não há codinomes em meu trabalho. Isto porque, elas também não os usavam. Assinaram em todas as atas que vi das diferentes sociedades que analisei, utilizando seus nomes completos. No Rio, quando casavam, muitas vezes com não judeus, usavam seus nomes de maneira clara. Em São Paulo, se contraíram matrimonio fora do grupo religioso, continuaram a identificar-se com os seus nomes e sobrenomes judaicos.
Assim, mapeei cinco sociedades de ajuda mútua fundadas por estes homens e mulheres nas cidade do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York.. Provavelmente estas não foram as únicas entidades fundadas por estes judeus e judias envolvidos com a prostituição. Em cada cidade onde o mercado era propício às exóticas moças judias, também devem ter existido suas sociedades, suas sinagogas e seus cemitérios próprios. O objetivo destas instituições era o de manter, na prática do cotidiano destes homens e mulheres, a identidade religiosa, já que o convívio com as comunidades judaicas locais lhes era proibido e as demais instituições comunitárias judaicas não permitiam sua participação.
Foi para mimetizar esses locais judaicos que lhes eram proibidos e para garantir assistência na velhice e na doença, que as polacas, seus amigos e/ou maridos (judeus ou não), fundaram suas entidades de ajuda mútua, que muitas vezes mantinham sinagogas e cemitérios próprios, e que tinham como objetivo também a ajuda aos associados na velhice ou na doença. E foi dos corpos documentais dessas sociedades, de suas atas e estatutos, que eu “reconstituí”, na medida do possível, os seus mundos privados, o universo de suas vidas fora de seu trabalho. Meu desejo foi o de encontrar, através destes documentos, seus rostos e suas falas.
Muitas vezes as pessoas que se voltaram a este capítulo da história dos judeus no Brasil ocultaram, em seus trabalhos, os nomes dos envolvidos com a prostituição - que foram uma pequena minoria dentro da comunidade judaica. Justificam essa atitude como preservando a identidade dos descendentes das polacas, e condenam a atitude que eu tive em meu trabalho, de não esconder os nomes e sobrenomes dessas mulheres e homens. Pois bem, eu conheci e entrevistei filhos e filhas de polacas. Diferentemente do que o senso comum dita, essas pessoas parecem estar em paz com suas histórias e me deram declarações lindíssimas. Então, por que esconder as polacas? Talvez porque, para uma parcela da comunidade judaica, nossa identidade é um dado, e nesse somos os “escolhidos de Deus”. Portanto, acham que não pode haver entre nós pessoas que tenham vivido de ocupações moralmente condenáveis.

Na história da minha história em busca das polacas encontrei narrativas que falavam de seres humanos e suas vivências das circunstâncias da vida. O mais bonito, certamente, é que para onde emigraram, fundaram sociedades que mimetizavam o mundo judaico do qual estavam alijadas. O lema da sociedade carioca fala por si. Eram as irmãs dos Cheised chel emes: da caridade de verdade, aquela que não deseja recompensa.
As polacas de Santos - No início da minha pesquisa, no final dos anos 80, e ao longo do trabalho, encontrei tanto pessoas dispostas a ajudar quanto verdadeiras muralhas a transpor. O historiador carioca Robert Pechman, do IPUR/UFRJ, contou-me que escreveu, em meados dos anos 70, uma reportagem sobre da história da comunidade judaica de Santos para a revista paulista Shalom. Durante esse trabalho, localizou o cemitério israelita de Cubatão. Contudo, as referências a essa parcela da comunidade judaica local foram censuradas pela revista...
Talvez seja de Pechman o mérito de ter “descoberto” o cemitério, fundado pela Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos (SBRI de Santos). Pouco se sabe sobre esta sociedade, que congregava as polacas de Santos, e que mantinha o cemitério que ora vem sendo restaurado pela Chevra Kadisha de São Paulo.. Ao contrário do que aconteceu com os livros de atas das socidades de beneficência e assistência mútua das polacas de São Paulo e do Rio, os livros de atas das reuniões da sociedade de Santos não foram por mim localizados, à exceção de um, encontrado no Lar Golda Meir, referente à ata da Assembléia Geral Extraordinária, de 3 de dezembro de 1966.
Semelhante às entidades de São Paulo e do Rio, a SBRI de Santos tinha por finalidade a assistência e auxílio aos associados nos momentos difíceis, manutenção de uma sinagoga, onde se celebrava as principais festas, e de um cemitério para homens e mulheres judias que se ocuparam do baixo meretrício. No início dos anos 60, elas já viviam o fim de sua associação, com o falecimento de seus sócios e a impossibilidade de equilibrar receita e despesas.
Nesta ata por mim localizada, referente à assembléia da SBRI de Santos, em dezembro de 1966 na sede da
sociedade, convocada a partir de anúncio na "imprensa local e de São Paulo", estava em pauta a venda da sede social da entidade:
"em virtude de a receita da Sociedade estar bastante reduzida, por motivos e causas várias, notadamente pelo falecimento e mudança de domicílio de sócias, tem sido penoso à Diretoria a realização do objeto social. Tem sido possível atender aos fins da Entidade, mediante donativos. Há compromissos financeiros, porém, que atender com urgência. E, nessa emergência, não encontrou a Diretoria outra solução, senão a venda de propriedade da Sociedade situado nesta cidade (Santos), na Rua Amador Bueno nº 322, apurando-se numerário suficiente para a satisfação desses compromissos, como por exemplo, a construção de túmulos, necrotério etc. na parte do cemitério de Cubatão, doado pela Prefeitura Municipal à nossa Sociedade e possibilitando ainda, ampliar a assistência que vem prestando aos sócios e a realização de obras estatutárias."
Dirigiram os trabalhos desta assembléia:
Presidente da Mesa - Cecilia Oistrag Centofanti
Secretária - Regina Goodman Rothenberg
Escrutinadora - Joana Schlinberg
Escrutinadora - Rachel Waisman
Com a aprovação da venda, a sociedade passou a sediar-se na residência de sua presidente. Esta situação de declínio vivida pela SBRI de Santos em muito se assemelha às das sociedades de outras cidades. A sociedade santista foi lembrada, em seus áureos tempos, segundo os vizinhos de sua sinagoga, como contou Pechman, destacando que "[no passado, durante os] feriados judeus elas organizavam enormes festejos que chegavam a durar três dias. Naquelas datas elas traziam rabino e 'hazan' de São Paulo”.
A sócia Sarah Michelin, talvez lembrando-se deste tempo distante, apoia a venda da sede "para que a Sociedade não venha a perecer em futuro próximo", o que infelizmente acaba ocorrendo.
Esta ata de 1966 na verdade marca o ponto de partida de um processo de deterioração do cemitério israelita de Cubatão. É deste ano, também, o último sepultamento ali realizado. A partir de então, em decorrência da dissoução da Sociedade, causada pela morte da maior parte de seus sócios e pela decorrente falta de recursos, o lugar praticamente caiu em abandono.
Sua recuperação e futura conservação pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo Chevra Kadisha, entretanto, estará preservando a história das vidas destas mulheres qu
e, apesar de marginalizadas da sociedade judaica, soouberam e quiseram preservar sua identidade judaica.
Não somos nada, nos fazemos diariamente, escolhendo e dando perfil ao conjunto do qual queremos fazer parte. E isso as polacas souberam fazer. Colocadas à margem da coletividade, recriaram um mundo solidário nas suas sociedade de auto-ajuda. Não precisaram que ninguém lhes dissessem que eram judias. Se fizeram judias nas práticas do seu dia-a-dia. Sabiam que eram fruto de uma circunstância de miséria e exclusão do mercado de trabalho formal. Souberam viver essa diversidade e morreram preservando os ritos judaico.
Da memória ao esquecimento - Em São Paulo, as polacas foram mais numerosas do que em Santos, e sua história é melhor documentada. Os livros de atas da Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI), que as congregava, encontram-se nos arquivos do Lar Golda Meir, onde algumas das sócias passaram a residir na velhice. Na década de 60 foi firmado um acordo com o Lar, que fez com que os fundos obtidos pela venda da sede social da SFRBI, à Rua Ribeiro de Lima 44, fossem transferidos para o Lar Golda Meir que, em troca, comprometia-se a abrigar as sócias em sua velhice.
Por outro lado o cemitério da Sociedade, localizado junto ao cemitério do Chora Menino, no bairro de Santana - também abandonado, na década de 60 - acabou desapropriado e demolido pela prefeitura em 1971. Nada resta das lápides, da casa de Tahara ou de um comovente monumento que, neste campo santo, relembrava os seis milhões de judeus assassinados durante a Shoá.

Os ossos - ou o que deles restava - foram transferidos para o Cemitério do Butantã, mas estão sob 255 pequenas lajotas de cimento, de cerca de um metro de comprimento, sem qualquer menção aos nomes destes homens e mulheres. Estão enterrados como indigentes. Sua memória foi inteiramente obliterada pela intolerância de uma sociedade que os discriminou em vida e parece querer esquecê-los depois da morte.
O trabalho de restauração do Cemitério Israelita de Cubatão é um feito a ser comemorado com alegria. Mas é oportuno lembrar, neste momento, que existe uma dívida para com as memórias das vidas dos homens e mulheres cujos corpos vieram do Cemitério Israelita de Santana, e cuja lembrança, ao contrário do que agora acontece com a dos mortos de Cubatão, e à revelia de seus esforços para se manterem judeus em vida e depois da morte, foi aniquilada.
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"O Cemitério Israelita de Cubatão (62 km a sudeste da capital), na Baixada Santista, é constante objeto de interesse histórico. Com 75 sepulturas, 55 de mulheres e apenas 20 de homens – a mais antiga de 1924 e a mais recente de 1966 –, já foi tema de pesquisa acadêmica na UniSantos e é freqüentemente visitado por escolas. A curiosidade se deve ao fato de lá estarem enterradas em sua maioria as chamadas polacas, mulheres judias que, no início do século 20, deixaram o Leste Europeu atingido pelo anti-semitismo em direção à América e acabaram sendo exploradas na região. “Ainda hoje, o cemitério recebe a visita de antigas amigas daquelas mulheres”, diz Maria Salete Otama Onady, responsável pela manutenção do campo-santo. No livro Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição, as polacas e suas associações de ajuda mútua (ed. Imago), a historiadora Beatriz Kushnir relata a saga dessas imigrantes ao desembarcarem em Santos, São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Nova York.
MEMÓRIA – Quando a Chevra Kadisha assumiu o Cemitério Israelita de Cubatão, em 1996, o local se encontrava em completo estado de abandono, com sepulturas deterioradas e solo quebradiço. As obras de restauração do campo-santo foram executadas entre 1996 e 1997, na gestão de Marcos Zlotnik, e incluíram o conserto dos túmulos, a recuperação das matzeivot, ajardinamento, pavimentação das ruas, instalação de lavatório, colocação de placa indicativa no portão e de local apropriado para o acendimento de velas. Ainda no exercício de 1997, o campo-santo, que ocupa uma área de 853 metros quadrados anexa ao cemitério católico, foi reinaugurado. Desde então está em perfeito estado, com plantas floridas, solo ajardinado e sepulturas limpas.
Assim, além dos cemitérios de Vila Mariana, Butantã e Embu, a Chevra Kadisha cuida também da manutenção do de Cubatão, preservando de forma digna a memória de todos os integrantes de nossa comunidade. Localizado na rua São Vicente, s/n, no bairro Fazenda Cafezal, o Cemitério Israelita de Cubatão pode ser visitado de domingo a quinta, das 8 às 18h, e às sextas-feiras, das 8 às 16h. É necessário apenas solicitar a abertura do portão junto à administração do cemitério católico".

quinta-feira, 22 de março de 2007

Nomear é conhecer

Beatriz Kushnir, "Polacas voltam a ter nomes no Cemitério Israelita do Butantã”. Revista A Hebraica, São Paulo, Ano XLI, n.º 458, abril de 2000, pp. 48-51.
Por
alguns anos estudei a história de um grupo de imigrantes judeus em algumas cidades do Brasil e mesmo fora dele. Por curiosidade fiz as contas e percebi que fazem doze anos que me sinto debruçada e envolvida por essas trajetórias. Refiro-me as moças judias prostitutas que ficaram conhecidas como polacas. Meu trabalho foi também uma caminhada envolta em paixão. Enamorei-me por essas narrativas e desejei muito que um trabalho acadêmico pudesse interferir e transformar uma dada realidade. De muitas maneiras, posso dizer que carrego, orgulhosa essa glória, dividida certamente com muitos que pelo caminho também se apaixonaram por elas. Quando comecei a pesquisa, em 1988, era um tabu mencionar essa história. Outros tempos vivemos hoje felizmente, e me sinto muito gratificada por não ter desistido, idéia que sempre se mostrou para mim muito longínqua.
Em um país que editar uma tese já é um milagre, fazê-la um agente transformador é algo inominável. A cada palestra que era convidada a falar sobre as polacas, sublinhava o estado lastimável dos seus cemitérios e descortinava um passado, obrigando os que me ouviam a adentrar em um espaço envolto por mistérios e segredos desnecessários. Assim, em 1997 eu escrevi um artigo para o jornal paulista Resenha Judaica, sobre a restauração do cemitério israelita de Cubatão, que ficou três décadas abandonado e pertenceu à Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos (SBRI de Santos), e foi restaurado pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo Chevra Kadisha, em cooperação com a Prefeitura de Cubatão. Ali estão enterrados cerca de 15 homens e 60 mulheres de origem judia que tiveram como ofício a prostituição e a cafetinagem no baixo meretrício santista, onde atuaram até a década de 1960.[1]
Dois anos depois, em 1999, o presidente da Chevra Kadisha, Marcelo Kochen, me convidou a ajudá-lo a colocar os nomes nas lápides das polacas que estão no Cemitério Israelita do Butantã. Isto porque, no fim dos anos de 1960 as sócias da Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFBRI), já idosas e sem poderem cuidar umas das outras, transferiram as sócias asiladas na entidade para o lar dos velhos da comunidade judaica de São Paulo, no bairro de Vila Mariana. O cemitério comprado pela SFRBI no bairro de Santana e inaugurado em 1928 foi desapropriado no início da década de 1970. O estado de abandono, a ausência de responsáveis pela SFRBI e as necessidades do cemitério católico ao lado, definiram esse ato. Pelos dados do departamento de Cemitérios da Prefeitura de São Paulo, haviam ali 233 corpos enterrados. Vinte e quatro desses foram reclamados por familiares, sendo dezoito transferidos para o Butantã e seis para cemitérios católicos na cidade. O restante foi colocado em fileiras de lápides sem identificação na quadra 136 do setor "N" do Cemitério Israelita do Butantã. Essa situação permaneceu por vinte e sete anos.
No dia 27 de fevereiro de 2000, a meu pedido, realizou-se naquele cemitério uma reza: a inauguração das lápides das sócias da SFBRI. O hazan David R. Hullock e depois o rabino Henri Sobel comandaram esse ato religioso. Ou seja, vinte e sete anos depois cada uma das mulheres e homens enterrados naquela quadra receberam nas suas lápides o seu nome e a sua data de falecimento. Sempre imaginei que esse seria o ponto final do meu trabalho, o resgate material daquelas identidades. Mas percebi que não há atos isolados. Ao assentar os nomes completos nas lápides, pode-se conhecer uma faceta de suas identidades. Entretanto essa não se esgota nesse ato e não nos faz conhecê-los. A única forma de tê-los um pouco mais completos é mergulhando nas suas histórias.
Nomear, conhecendo, é de outra ordem. Assim, creio que a investida deve se preocupar menos com a "lista de nomes" e os possíveis sobrenomes conhecidos. A glória ou não de muitos ao verem o seu "nome de família" ou o de um amigo ali e ficar preso a esse dado é não ter, infelizmente, a grandeza de espírito para inclinações mais densas. O nome naquelas lápides não é um ato de curiosidade para os vivos que ali vão olhá-los. É sim um presente póstumo para quem ali está. Em cada lápide, não se esqueçam, há os restos de um corpo, de uma história, de uma vida.
Na história da minha história em busca das polacas encontrei narrativas que falavam de seres humanos e suas vivências dos percalços e das alegrias do dia-a-dia. O mais bonito, certamente, é que para onde emigraram, fundaram sociedades que mimetizavam o mundo judaico do qual estavam alijadas. O lema da sociedade carioca fala por si. Eram as irmãs dos Cheised chel emes: da caridade de verdade, aquela que não deseja recompensa. Nessas horas me lembro sempre de dona Rebecca, a última polaca carioca que morreu com 103 anos em 1984. Em uma conversa com o jornalista Zevi Ghivelder ela afirmou saber que era fruto de uma circunstância e soube vivê-la.
O meu desejo de trazer a história desse grupo e de, principalmente, deixá-los falar, passou necessariamente por escolhas difíceis. Meu compromisso foi sempre o de respeitar as suas vontades. Seguindo esta trilha, não há codinomes em meu trabalho, como também agora não existem identidades arrancadas nas lápides do Butantã. Isto porque, elas também não usavam nomes falsos Assinaram em todas as atas das suas sociedades de ajuda mútua que vi, das diferentes sociedades que analisei, os seus nomes completos. No Rio, quando casavam, muitas vezes com não judeus, acrescentaram aos seus nomes o sobrenome do amado, de maneira clara. Em São Paulo, se contraíram matrimonio fora do grupo religioso, continuaram a identificar-se com os seus nomes e sobrenomes judaicos[2].
Mas conhecer suas identidades só faz sentido quando sabemos de quem estamos falando. Mais do que nomes ao vento, histórias de vida. Pelo meu desejo sincero de ter podido contribuir para esse conhecer, gostaria de concluir com as palavras do rabino Sobel na reza do dia 27 de fevereiro, torcendo que estas sejam palavras proféticas:

"rezamos hoje 'El malê rachamim' em memória das mulheres sepultadas nesta área do cemitério. Que cada uma delas descanse em paz."

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Notas:
[1] Devo a Robert Pechman (IPUR/UFRJ) a menção desse local e a Felipe Doctors as fotos do local em 1970.
[2] Mapeei cinco sociedades de ajuda mútua fundadas por estes homens e mulheres nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York. Provavelmente estas não foram as únicas entidades fundadas por estes judeus e judias envolvidos com a prostituição. Em cada cidade onde o mercado era propício às exóticas moças judias, também devem ter existido suas sociedades, suas sinagogas e seus cemitérios próprios. O objetivo destas instituições era o de manter, na prática do cotidiano destes homens e mulheres, a identidade religiosa, já que o convívio com as comunidades judaicas locais lhes era proibido e as demais instituições comunitárias judaicas não permitiam sua participação.

domingo, 18 de março de 2007

Encrenca no mangue

O iídiche é muito próximo do alemão. Através da competição Migração de Palavras organizada, recentemente, pelo Conselho da Língua Alemã (Deutscher Sprachrat) pessoas de 70 países puderam sugerir as palavras alemãs que "viajaram" para outros idiomas. Das seis mil palavras apresentadas, o termo mais sugerido foi a versão francesa para clarabóia vasistas, do alemão was ist das?, literalmente, "o que é isto?".
Se todos soubessem, entretanto, que "encrenca" tem origem alemã, a nossa versão de "problema" também teria sido um grande sucesso. Tudo começou com as prostitutas judias que vieram para o Brasil no final do século 19 e começo do século 20, explica a historiadora Beatriz Kushnir, igualmente de origem judaica, que escreveu o livro Baile de Máscaras: Mulheres Judias e Prostituição.Elas falavam iídiche, a língua dos judeus da Europa Central. Quando achavam que um cliente tinha doença venérea, falavam ein krenke (krank significa "doente" em alemão). Nascia assim a palavra "encrenca", usada desde então no português do Brasil para designar uma situação difícil.

O Globo 25/2/07 - O cemitério das polacas

Prostitutas se associaram em 1906

Faz 37 anos que ninguém é enterrado ali. Mas continua viva a polêmica em torno do cemitério das prostitutas judias, em Inhaúma. Alegando não ter o controle oficial da área, particular e não reivindicada, a diretoria, a mesma do Cemitério Israelita do Caju, vetou a entrada do GLOBO e da historiadora Beatriz Kushnir.
Para Beatriz, diretora do Arquivo da Cidade e autora do livro “Baile de máscaras”, sobre as polacas, “essa parte da história ainda incomoda”:
— Segundo a tradição, prostitutas e suicidas não são enterrados nos cemitérios comuns. As polacas criaram, em 1906, uma associação e compraram o terreno. Dez anos depois, fizeram o primeiro de 800 enterros. Prostitutas, maridos e filhos tinham espaço garantido.A maioria das sepulturas, hoje, está sem inscrições na lápide. Segundo Beatriz, a associação teve Sarah Rachel Pick, mãe do músico Jacob do Bandolim, e Estera Gladkowicer, namorada de Moreira da Silva. Kid Morengueira dizia tê-la conhecido “na casa de amigos”. Foi a ela que ele dedicou o samba “Judia rara”.

O Globo 4/2/07 - Coluna Gente Boa

Polacas de Inhaúma
O Cemitério Israelita de Inhaúma, onde estão sepultada as polacas, as prostitutas judias que vieram para o Brasil no início do século XX, impediu esta semana a entrada da pesquisadora Beatriz Kushnir, autora dse um importante livro sobre a trajetória daquelas mulheres no Rio. Beatriz luta pela preservação do campo santo, mas suspeita que se tenta "passar o trator" sobre a história das polacas. "Quem dera o Rio fizesse como São Paulo e recolocasse o nome (das mulheres)nas lápides destruídas de Inhaúma, desabafou Beatriz em carta ao presidente da Federação Israelita do Rio de Janeiro.

Os perigos de um jornalista desinformado






Li
, ontem (26/8/2006), espantada, no Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, a resenha do livro "Bertha, Sophia e Rachel – a sociedade da verdade e o tráfico das polacas nas Américas” (Autor: Isabel Vincent. Tradução: Alexandre Martins. Editora: Relume Dumará. Quanto: R$ 39,90, 248 págs.). O jornalista, autor da resenha, é editor das revistas "EntreLivros" e "História Viva", e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha).
Oscar Pilagallo destacava que o “foco do livro é a inédita associação que as polacas criaram para enfrentar a rejeição da comunidade judaica”.Pena o prestigiado jornalista não ter se detido numa pesquisa básica para escrever sua crítica. Isto porque, sou autora do livro “Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição, as polacas e suas associações de ajuda mútua”, fruto de minha dissertação de mestrado em História, na Universidade Federal Fluminense, defendida em 1994 e publicada pela Editora Imago em 1996. Fui a primeira a localizar a Sociedade de Ajuda Mútua delas no RJ, trabalhando também como o material localizado das de SP, Santos, Buenos Aires e NY. No Rio, localizei descendentes das polacas e o contador da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI).
No meu livro proponho que a análise deste fato possibilita compreender a densa problemática da construção de uma identidade judaica em seu conceito moderno. Este estudo não tem, portanto, como objeto a reflexão da prostituição e da sexualidade que absorveu médicos, juristas e policiais na virada do século XX nas principais capitais do país, seguindo uma tendência mundial de normatizar condutas e controlar o espaço público.
Busquei reconstituir como um determinado grupo, marginalizado na sua dupla condição de imigrante e de fora da lei, viabilizou mecanismos de auto-proteção que lhes permitiram romper a exclusão religiosa e social na qual os legisladores do país e os dirigentes das comunidades judaicas os colocaram. Assim, para além de percebê-los como vítimas sociais da miséria e dos processos migratórios, desejou-se perceber seus mecanismos de sobrevivência e de construção de uma identidade social tida como positiva.Os homens e mulheres envolvidos na atividade do tráfico e no mercado da prostituição estrangeira, e que eram de origem judaica, obviamente não encontraram a possibilidade de construírem laços de solidariedade e sociabilidade com as comunidades judias nas cidades onde coexistiram. Foram percebidos sempre como transgressores sem caráter, estabelecendo, pela oposição de condutas, o lado bom e mau da comunidade. Algo talvez compreensível, vindo de imigrantes que fugiam de perseguições religiosas e queriam a todo custo construir uma imagem positiva na nova pátria imigrada.


Entretanto, em um ponto estes dois lados da comunidade judaica se encontravam: a dura condição de estrangeiro lhes era comum.Este mecanismo de separação gerou neste grupo excluído um interessante artifício de sobrevivência: a necessidade de organizar instituições – sociedades de ajuda mútua – que refizessem uma vida social e religiosa e lhes permitissem reconstituir uma identidade pelas práticas coletivas. E foi para encontrar tais traços que, desde o início, esta pesquisa buscou localizar fontes produzidas pelos homens e mulheres envolvidos nesta atividade e, assim, abandonar leituras de terceiros acerca de sua existência. É por isso que o livro tem como imagem central a de um baile de máscaras. Desejando apreender rostos e não rótulos, objetivou-se encontrar tais pessoas e suas histórias particulares, rompendo com as máscaras sociais previamente estabelecidas.
Na pesquisa foi possível encontrar o histórico de cinco sociedades fundadas por homens e mulheres judeus envolvidos com a prostituição: a do Rio de Janeiro – Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI) – fundada em outubro de 1906; a de São Paulo – Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI) – fundada em 1924; a de Santos – Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos – fundada em 1930; a de Buenos Aires – Sociedade de Ajuda Mútua Zwi Migdal – fundada em 1906; e a de Nova York – The New York Independent Benevolant Association – fundada em 1896.


Entretanto, só as duas primeiras são objeto do texto, pois são delas os documentos originais examinados: atas, estatutos, livro-caixa, material iconográfico e depoimentos de funcionários e/ou descendentes. A entidade carioca, dirigida ora por homens ora por mulheres, pode ser mais bem percebida como uma irmandade centralizada em poucas figuras que tentou sempre superar crises, dando a impressão de um eterno recomeço e reestruturação para levar a cabo seus objetivos. A idéia de irmandade pode ser vista em dois momentos: primeiro quando o grupo de mulheres que cuidava da assistência social se auto-intitula as irmãs do "Chesed shell emes" – ou da "Caridade de Verdade", aquela que não busca recompensa. E um segundo momento, quando a Primeira Irmã Superiora falece, em 1932.


A materialização desta noção de irmandade encontra-se na lápide de Fanny Zusman, no cemitério fundado pela entidade carioca e que se localiza no bairro de Inhaúma (RJ), este é o primeiro cemitério judeu da cidade. Em São Paulo, a comunidade judaica permitiu, por um lado, que as polacas fossem amparadas no Lar dos Velhos (asilo mantido pela comunidade no bairro de Vila Mariana), e não permitiu, por outro, a manutenção de suas identidades quando do translado dos corpos do Cemitério Israelita de Santana/Chora Menino para o Cemitério Israelita do Butantã. Nos anos de 1970, após a desestruturação física da entidade paulista, com a velhice de seus membros, o cemitério da sociedade, em Santana/SP, foi desapropriado pela Prefeitura dado o seu estado de abandono.


Os corpos não reclamados por parentes foram removidos para o cemitério israelita da cidade. Só em 27/2/2000, certamente pelos desdobramentos que a publicação de meu livro obteve, a Sociedade Cemitério Israelita Chevra Kadish, de SP, recolocou os nomes nas lápides vindas de Santana/Chora Menino, numa cerimônia que contou com a presença e a reza do Rabino Soibel. Portanto, caro jornalista Oscar Pilagallo, teses dão muito prazer e trabalho aos seus autores. Um estudo como este, financiado pela CAPES, num Programa de Pós Graduação em História como o da Universidade Federal Fluminense, de grau máximo, não ficou nas prateleiras das bibliotecas. Ganhou as estantes das livrarias e inúmeras reportagens a época. O tema merecia uma pesquisa sua para elaborar a resenha. Até porque, ao que parece, indicações no livro recente “beberam” nas minhas reflexões.

Revista Eletrônica de História do Brasil

 Resenha do livro: KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras. Mulheres judias e prostituição: as Polacas e suas Associações de Ajuda Mútua. RJ, Imago, 1996.
Resenhista: Ronaldo PEREIRA. Revista Eletrônica de História do Brasil
[Volume 1 - Número 1 - Maio de 1997]

Folha de S. Paulo, Caderno +, 21/1/2007

Os dez +
[Uma seleção de livros e eventos culturais indicados pelo Caderno +]
Periódico: Revista de História da Biblioteca Nacional
A edição de janeiro da "Revista de História da Biblioteca Nacional" traz reportagem de capa sobre as "polacas", imigrantes judias que vieram da Europa Oriental a partir de meados do séc. 19 e se prostituíram, além de entrevista com o brasilianista Kenneth Maxwell, entre outros artigos.

O Estado de São Paulo, 25/4/1997 - O fim de um tabu

Moisés Rabinovici
Historiadora, cuja pesquisa que se transformou em tese de mestrado foi iniciada em 1988, rompeu um tabu da comunidade judaica, ao resgatar a memória de segregados
Inhaúma - Aqui jazem 797 polacas, seus filhos e alguns cafetões - os "companheiros de viagem" da historiadora Beatriz Kushnir, judia de 30 anos que rompeu um tabu da comunidade judaica ao resgatar a memória de judeus segregados, porque prostituídos. Se hoje as polacas estão ressuscitando, mesmo nos jornais e programas de TV comunitários que antes as censuravam, é porque desde 1988 Beatriz garimpou preconceitos e paranóias anti-semitas até encontrar uma mina de documentos para construir uma tese de mestrado, aprovada com louvor em 1994 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, depois transformada no livro Baile de Máscaras: Mulheres Judias e Prostituição (Imago, 1996).
Beatriz esteve no subúrbio carioca de Inhaúma, aos 2 anos, levada pela mãe, que foi ver uma empregada. Não é o nome tupi, que significa Ave Preta, a razão do atual aspecto sinistro crescentado ao cemitério onde florescem pés de mandioca e bananeiras entre os túmulos. A rampa para o portão com a estrela de Davi está cortada por uma trincheira de paus e pedras. A polícia terá de derrubá-la se quiser atacar os traficantes da favela do Rato Molhado. O perigo de morte torna-se mais macabro do que os mortos. "Nada é à-toa", assegura Beatriz, de volta ao cemitério de Inhaúma tantas vezes depois de adulta. "Apaixonei-me perdidamente por elas", aponta para as polacas. Uma das lápides traz o nome de Estera Gladkowicer, judia russa que se matou em 1968.
"Judia rara" - "Foi um caso meu", contou ao Estado o sambista Moreira da Silva. "Uma vez fui ver o túmulo, mas não tem graça nenhuma: a vida continua", diz ele, que mora com vista para o cemitério do Catumbi. "Enterrou ali, não sai mais". Para ela compôs o samba Judia Rara. E com a memória afiada, aos 95 anos, ele cantarolou: A rosa não se compara/A essa judia rara/Criada no meu país/Rosa de amor sem espinhos/Diz que são meus seus carinhos/E eu sou um homem feliz.
O avô de Beatriz vendia a prestação para as polacas, "ótimas freguesas". Falavam em iídiche. Encrenca, em português, vem [de] ein krenke, que quer dizer doente. "É o que repetiam as polacas quando temiam que um cliente tivesse doença venérea", concluiu o jornalista Luís S. Krausz, mestre em letras clássicas pela Universidade da Pensilvânia, EUA.
Pioneiras - As polacas foram pioneiras na imigração judaica para o Brasil. As primeiras desembarcaram no Rio em 1867. A partir de 1904, começaram a chegar os judeus para as colônias agrícolas Philippson e Quatro Irmãos, no Rio Grande do Sul. Uma próxima leva de imigrantes veio para o Rio e São Paulo no final da Primeira Guerra. A ascensão do nazi-fascismo produziu um quarto grupo com refugiados judeus da Europa Ocidental. "A existência de prostitutas judias durante o período das imigrações para as Américas é um tema tabu para uma parte da comunidade judaica em todo o mundo", diz Beatriz. "É um tema cercado pelo silêncio e pelo segredo".
O que a manteve firme diante de pressões contra a sua pesquisa foi uma grande curiosidade em saber: "Como um grupo marginalizado, tanto pelos legisladores da cidade como pela comunidade judaica, recriou redes de solidariedade e sociabilidade que lhes definiu uma identidade social e uma auto-imagem positivas?" No livro, Beatriz explica: "É por isso que o trabalho tem como imagem central um baile de máscaras.
Desejando apreender rostos e não rótulos, objetivou-se ir ao encontro de tais pessoas e suas histórias particulares, rompendo com as máscaras sociais previamente estabelecidas". Ela ainda achou quatro polacas entre mendigos num asilo de loucos.
Conversou com vários descendentes. Mapeou cinco sociedades fundadas no Rio, em São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York "para manter, na prática do cotidiano, a identidade religiosa, já que o convívio com as comunidades judaicas locais era proibido". Recuperou 44 anos de atas dos encontros. O lema das polacas cariocas era Chessed shel Eimes, ou Caridade de Verdade. Mas tão nobre desígnio não impressionava o Centro Sionista do Rio, que conclamava, pelo semanário Dos Iídiche Vochenblat, em 26 de setembro de 1924, o reinício da "velha luta contra os elementos no Rio de Janeiro que, embora de descendência judaica, só merecem a nossa repulsa, sob todos os aspectos, pois envergonham a todos nós que vivemos no Brasil assim como enxovalha a todo o povo judeu".
Eram tmeim, impuros. Beatriz esboça o perfil dos três grupos de cafetões da época. O francês, individualista, dominava suas mulheres pelo terror e violência. Marcava as rebeldes com navalhadas no rosto. O portenho, sentimental, controlava pelo coração. O judeu já era estereotipado. Na visão de dois delegados, "exploram o lenocínio como se estivessem à testa de uma casa de negócios para o qual a mulher é exclusivamente uma mercadoria". O escritor judeu Stefan Zweig passou pelo Rio em 1936. Suas lembranças foram as prostitutas: "(...) que caminhos de longe, que destinos reúnem essas judias e francesas, até terminarem aqui, pelo preço de 3 mil réis (cerca de 3 francos franceses)! Que cenário para a satisfação do mais banal e animal dos prazeres rápidos, raramente vi algo tão fascinante como essas quatro ruas cintilantes, que dentro de seus muros inquietantes servem a um único propósito e exclusivamente a ele. Algumas mulheres são realmente belas (...) uma discreta melancolia paira sobre todas e por isso a sua humilhação, sua exposição na vitrine nem parece vulgar, comove mais do que excita. Uma visão inesquecível".
Máfia - A máfia de cafetões judeus, a Zwi Migdal, esteve ativa em Varsóvia até a década de 30. Recrutava suas "escravas brancas" em pobres cidades do Leste europeu usando como isca "um comerciante rico e casadouro" prestes a "fazer a América". Quando necessário, exigência de família, até se casavam no religioso. Muitas mulheres só descobriam ser parte de um harém já em alto-mar. Desembarcavam sem alternativa que não a de se prostituírem. Estavam num novo país, desvirginadas, não falavam a língua nem tinham dinheiro. "Senhoras honradas iam ao porto avisar as recém-chegadas que estavam sendo enganadas", conta Beatriz. "Mas era uma balela, pois não lhes davam trabalho". E é aí que ela vê uma grande ferida aberta: "A impossibilidade de ajudar em momento de crise".
Com o tempo, surgiram várias organizações judaicas em Nova York e Londres para combater a Zwi Migdal.
Irmãs - As polacas brasileiras tratavam-se por irmãs. E muitos dos epitáfios de Inhaúma perpetuam essa irmandade. A última "irmã superiora" morreu em 1984, aos 103 anos. Beatriz a chama de "rainha das rainhas". Era Rebecca Freedman, a Becca, que veio de Zacrichin, na Polônia, via Nova York. Foi a última presidente da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita. Profundamente religiosa, ela guardava até o shabat, do pôr-do-sol de sexta ao de sábado.
Um dia tentaram lhe mostrar a contradição de ser prostituta, com uma clientela goi (de não-judeus) e ainda insistir em ser judia. No que ela respondeu: "Olha, o freguês podia ser treif (sujo), mas o dinheiro era kosher (purificado para o consumo)".
Depois que Baile de Máscaras começou a repercutir com resenhas em jornais e revistas, Beatriz recebeu alguns telefonemas anônimos. A pergunta era a mesma, sempre: "É da casa da dona Rebeca?" A ficha demorou a cair até que compreendeu de que a estavam chamando.

Notícias sobre o livro Baile Máscaras

Baile de Mascaras: Mulheres Judias e Prostituição
Foi um extraordinário sucesso editorial este primeiro estudo acadêmico, de Beatriz Kushnir, publicado no Brasil sobre a prostituição judaica. Conhecidas como polacas, essas mulheres deixaram uma marca no folclore urbano brasileiro, embora o total de prostitutas e cáftens judeus que aqui chegaram, entre 1867 e o final da década de 30, não passe de 2 mil. Mais importante do que o número é a rejeição que este grupo sofreu por parte da comunidade judaica mais ampla, intransigente em seus valores morais. Num momento histórico em que os imigrantes judeus lutavam contra o preconceito da sociedade como um todo, era fundamental deixar claro que os envolvidos com a prostituição eram marginais da comunidade.
Por isso, não se permitia que participassem de instituições como sinagogas, clubes ou sociedades beneficentes. Nem sequer se permitia que fossem sepultados nos cemitérios dos outros judeus. As polacas e seus cáftens, assim, criaram, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Santos, sociedades de beneficência e ajuda mútua independentes, organizadas exatamente nos mesmos moldes das que sempre foram características das comunidades judaicas em todo o mundo, e cujos documentos foram minuciosamente estudados por Kushnir. Essas associações encarregavam-se tanto da ajuda a seus velhos ou doentes quanto da manutenção de sinagogas e de cemitérios próprios. O apego à origem étnica e religiosa foi essencial para a sobrevivência psíquica dessas mulheres e para a manutenção de uma auto-imagem positiva, diante das circunstâncias adversas em que viveram. http://www.conib.org.br/noticias/03022.html]

Revista Aventuras na História (edição 38/outubro de 2006)

FÁBIO VARSANO
Por quase um século, elas se prostituíram em ruas de grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Nova York. Judias, nascidas no Leste Europeu e conhecidas como "polacas", essas prostitutas eram pobres, quase sempre analfabetas e sem dote para um bom casamento. Saíram de seus países ameaçadas por ondas de anti-semitismo, sem perspectivas, e acabaram recrutadas por cafetões - muitos também judeus. A história, que acaba de ser contada no livro Bertha, Sophia e Rachel, de Isabel Vincent, é estudada há anos pela historiadora Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e autora de Baile de Máscaras. Segundo ela, o relato mais antigo da trajetória delas por aqui fala da chegada, em 1867, de 104 "meretrizes estrangeiras" ao porto do Rio - dessas, 67 ficaram e 37 seguiram para Argentina. "No período, o mercado brasileiro era propício à prostituição, com a população masculina bem maior que a feminina", diz Beatriz. Na virada para o século 20, o chamado tráfico de escravas brancas virou debate mundial. O declínio ocorreu nos anos 1940. Judeus haviam sido exterminados pelo nazismo no Leste Europeu e os que sobreviveram eram imigrantes com outro perfil, o de refugiados. No Brasil, as zonas do meretrício do Mangue e da Lapa, no Rio, e do Bom Retiro, em São Paulo, foram extintas nessa época. A história delas por aqui foi esquecida.
Primeiro porque não tinham sucessoras. Depois porque sempre foram discriminadas - inclusive pela sociedade judaica brasileira da época, que não permitia a elas nem um enterro digno. A maior parte das polacas está enterrada em cemitérios construídos por associações que fundaram no Brasil, como o Cemitério Israelita de Inhaúma, no Rio.
Expressões usadas pelas polacas judias deram origem a palavras hoje muito populares no Brasil. Quando suspeitavam que um cliente tinha doença venérea, diziam ein krenke ("doença", em iídiche), que acabou se transformando em "encrenca". E, quando a polícia dava incertas nos bordéis, elas gritavam sacana ("polícia") - que virou "sacanagem". Mal vistas na sociedade, as polacas não freqüentavam os mesmos lugares que seus conterrâneos e eram segregadas até no cemitério. Sem falar o novo idioma e vivendo no submundo de um país estrangeiro, restou a elas se fecharem em entidades próprias para manter sua cultura. No Brasil, a primeira foi a Associação Beneficente Funerária Israelita (ABFRI), no Rio, em 1906. Objetivos: criar uma sinagoga, adquirir um cemitério, dar educação aos filhos das associadas e prestar assistência a doentes e idosos. "Era uma prova de que as polacas estavam aqui há algum tempo, já tinham família e se preocupavam com a velhice", aponta Beatriz Kushnir, que pesquisou documentos de associações do Rio, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York. O zelo pela tradição é traço comum. Contratavam cantores para conduzir os serviços religiosos em suas sinagogas e seguiam os feriados judaicos. Entre elas, falavam em iídiche (mistura de hebraico e alemão, falada por judeus da Europa Oriental).
A associação deixou de existir em 1968, por falta de recursos. As sócias ainda vivas estavam doentes ou muito idosas. As atas de reuniões obtidas por Beatriz revelam que, em seus 62 anos de existência, a entidade teve 1030 membros. As polacas de São Paulo fundaram a Sociedade Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI) em 1924 e, quatro anos depois, inauguraram o Cemitério Chora Menino, no Butantã. Segundo o Departamento de Cemitérios da Prefeitura, até 1971 ocorreram ali 233 enterros, mas o número de integrantes da associação sepultados lá deve ser bem maior. Na pesquisa, a historiadora encontrou o nome de 255 sócios da SFRBI.
De origem humilde, as polacas trabalhavam quase sempre no baixo meretrício ­- locais de prostituição freqüentados por quem tinha poucos recursos. Nos cabarés e bordéis de luxo, a soberania era das francesas, que exerciam na época grande fascínio no imaginário masculino. Atentas a esse fato, algumas judias aprendiam palavras em francês para tentar melhorar de vida.
Motorista de lotação e sambista, o cantor Moreira da Silva namorou por 18 anos uma polaca: a russa Estera Gladkowicer, que chegou ao Brasil com 20 anos em 1927, foi dona de bordel no Mangue e se matou em 68, ingerindo barbitúricos. Para ela, Moreira compôs Judia Rara:
"A rosa não se compara / A essa judia rara / Criada no meu país / Rosa de amor sem espinhos / Diz que são meus seus carinhos / E eu sou um homem feliz".
As polacas também estão presentes na letra de Mestre-Sala dos Mares, homenagem de João Bosco e Aldir Blanc a João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata (1910):
"Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas, jovens polacas e por batalhões de mulatas".
Outra referência é o poema Balada do Mangue, de Vinícius de Moraes, publicado em 1946:
"Glabras, glúteas caftinas/Embebidas em jasmim/Jogando cantos felizes/Em perspectivas sem fim./Cantais maternais hienas/Canções de caftinizar/Gordas polacas serenas/Sempre prestes a chorar".