Ainda cabe o termo “impuro” para estes imigrantes?
Beatriz Kushnir
Este livro é fruto de uma incursão acadêmica e se debruça sobre o período de 1890 até 1930, onde a prostituição era uma atividade legal na Argentina, e Buenos Aires era um centro de recepção de imigrantes que atuavam nesta área. O mercado da prostituição deslocava mulheres, inclusive as judias – enganadas ou não – de cidades como Odessa, Lodz e Varsóvia para Xangai, Nova York, Buenos Aires, Montevidéu, Córdoba, Santiago, Rio de Janeiro, Santos ou São Paulo, por uma rota de tortuosos. Essas mulheres se instalam no baixo meretrício, sendo alocadas no Mangue e na Lapa, no Rio de Janeiro; no Bom Retiro, em São Paulo, em La Boca, em Buenos Aires.
Mir Yarfitz inicia expondo a (controversa) denuncia da prostituta Raquel Liberman ao delegado Julio Alsograray, em 1928. Ela, uma moça judia que ao acusar, espontaneamente ou não, os membros da Zwi Migdal, permitiu ao delegado associar a prostituição ao tráfico de mulheres, e dizimar a atuação do grupo naquele país. Envoltas no antissemitismo que permeava a Argentina, as palavras de Liberman são utilizadas para desbaratar, ao meu juízo, um associativismo comunitário religioso dos membros judeus vinculados ao mercado da prostituição e construir provas que os criminalizava.
Yarfitz incorpora a ideia da delação e a analisa pelo viés do delito, como muitos outros estudos. O autor não questiona o dado: a delação. Não há para ele a possibilidade de coerção da diletante. A minha leitura do presente trabalho se deu por esse olhar: os limites de não se inquirir e duvidar das fontes primárias, não as colocando em perspectiva.
O livro, em cinco tópicos, se inicia no capítulo 1, quando o autor se centra nas “(...) narrativas da escravidão branca que circularam na imprensa e publicações populares, por meio de organizações nacionais e transnacionais durante meio século. Essas histórias serviram a fins sensacionalistas e persuasivos, refratando as ansiedades raciais e sexuais em uma era de massivas mudanças populares” (p.17) (Todas as traduções do inglês para o português foram feitas pela autora da resenha).
No capítulo 2, discute “(...) a figura do judeu neste mapa discursivo e experimental. Os judeus Askenazim, cuja categorização racial era escorregadia, [formulação que não me ficou clara], tornaram-se mais fortemente associados ao tráfico sexual do que os membros de outros grupos étnicos. A ameaça moral supostamente representada por alguns judeus tornou-se uma justificativa para as limitações da mobilidade migratória dos judeus”. Explicitando uma polarização dentro deste grupo étnico. Para o autor, “(...) paradoxalmente, o trabalho dos reformadores morais judeus para conter o tráfico atraiu ainda mais atenção à presença judaica no campo” (p.18), o que para Yarfitz parece um grave problema. O autor está mais preocupado com as celeumas que os judeus envoltos com a prostituição imporiam ao restante da comunidade. Esta preocupação foi sempre do lado oficial, onde o não contato permitiria se salvaguardarem.
No capítulo seguinte, há certamente, a hipótese mais controversa do trabalho. O autor se debruça em explorar um aspecto particular da narrativa do tráfico de escravas brancas, “(...) o shtile krupe, uma cerimônia de casamento religioso judaico sem um componente civil, que muitas vezes foi denunciada como uma testemunha-chave de recrutamento para o tráfico” (p.18).
No quarto capítulo, investiga a Sociedade Varsóvia, nome anterior da Zwi Migdal. Para o autor, “(...) embora a organização fosse frequentemente criticada como uma falsa instituição de caridade com sinagoga fictícia, sua estrutura de organização complexa espelhava a de outras associações de imigrantes voluntários e seus membros engajados em exibições públicas e privadas da identidade religiosa judaica”. Para Yarfitz, o ato de viver a religiosidade aparece como uma teatralidade ao exterior e não a possibilidade de inclusão e solidariedade frente ao agressivo e desconhecido novo país.
Reafirmando a sua perspectiva, o autor sentencia que “(...) os membros da sociedade agiam como outros empresários imigrantes, protegendo seus interesses econômicos e religiosos, alegando respeitabilidade e se identificando estrategicamente como argentinos”. Yarfitz sublinha, ainda que, ao meu juízo com um tom pejorativo, um igualitarismo de intenções entre mulheres e homens vinculados ao comércio do sexo ao definir que “(...) a gama de atividades comunitárias perpetuadas pela Sociedade também mina a dicotomia vítima / explorador, pois as mulheres acessavam certas formas de poder e segurança” (p. 18 e 19).
Pondo o tema em outra perspectiva, optei por investigar não as reflexões sobre estas Sociedades, mas sim, suas estruturas internas, o mundo privado de mulheres tidas como públicas. Encontrei narrativas de seres humanos e suas vivências dos percalços e das alegrias do dia-a-dia. Para onde emigraram, fundaram sociedades que mimetizavam o mundo judaico do qual estavam alijadas, tal qual a Zwi Migdal. Mulheres do seu tempo, quando não tinham minian – quórum de dez homens judeus adultos para as obrigações religiosas –, contratavam. Igualmente o faziam para terem um hazan/rabino que conduzisse o serviço religioso em suas sinagogas e cemitérios.[2]
As conjecturas de Yarfitz foram realizadas, em sua maioria, sem a consulta à documentação da Zwi Migdal, até porque, pelo que se sabe, a documentação da Associação foi pelos ares na explosão da AMIA (Associação Mutual Israelita-Argentina), em Buenos Aires, em 18 de julho de 1994. Mas também não houve uma preocupação do autor em demonstrar que existia outras possibilidades comprovadas documentalmente, de se inquirir o tema.
Ao circunscrever a visibilidade da prostituição, Yarfitz expõe em seu quinto capítulo, um mapa da evolução do trabalho sexual organizado pelos judeus em Buenos Aires, entre 1890 a 1930, juntamente com o aumento do boicote contra ele, a partir da denúncia de Liberman. “(...) Esses mapas destacam a escala, densidade e visibilidade da prostituição no coração de uma comunidade nascente e insegura. A visibilidade discursiva da prostituição judaica não era simplesmente um resultado do exagero antissemita ou das ansiedades judaicas dominantes: a ostentação "impura" estava entre os membros mais poderosos e visíveis de uma nova comunidade com poucas opções de mobilidade econômica ascendente”. Preocupado com o lado oficial da comunidade judaica, o dos puros, o autor demonstra a força com que os impuros ficaram marcados no imaginário social e, segundo ele, mancharam o lado oficial. Assim, “(...) embora muitos judeus tenham se mudado do centro da cidade, o coração do submundo judaico permaneceu no bairro central do centro, que continua até hoje associado ao seu passado judaico” (p. 19).
Muitos judeus faziam parte dessa atividade. Ou como prostitutas, ou como cafetões e cafetinas[3]. O autor sublinha como a “ostentação ‘impura’” aplacava as tentativas do “outro” lado em ascender. Ler no contemporâneo uma reflexão que ainda demarca essa polarização, me é muito difícil. A violência antissemita e a pobreza impuseram a milhares de judeus deixarem o Leste Europeu para “fazer a América”. A prostituição não era uma atividade desconhecida para homens e mulheres judeus no Leste Europeu. Ou porque participavam dela, ou porque a imprensa judaica divulgava o “tráfico de escravas brancas”, buscando alertar as moças judias deste (nefasto) fato.[4] O universo em questão remete à pobreza das famílias numerosas e as moças sem dote que jamais fariam um “bom casamento”. E, aqui, lembro o debate que o autor trava em relação aos limites e possibilidades de se apreender a mobilidade destas mulheres via esse “passaporte” de status.
Durante a leitura de Impure migration me perguntava se outros leitores refletiriam sobre o presente e o futuro possíveis para os judeus e judias envolvidos no comércio da prostituição. Há diversas narrativas que expõem tentativas salvacionistas da comunidade judaica oficial para com as moças que atuariam como prostitutas. Relatos de que membros da comunidade judaica se colocavam nos portos para avisá-las que tais promessas de casamento poderiam ser falsas e que seus destinos seriam, possivelmente, os prostíbulos. Havia a crença de que elas nunca sabiam seu real destino.
É fundamental pontuar, que a vida difícil nas comunidades judaicas e a ausência de mecanismos das instituições judaicas para oferecer uma alternativa melhor, parecem não ter conseguido frear o fluxo de mulheres judias que se dirigiram para a prostituição. Alertar não era o suficiente para acabar com o problema. Talvez seja este o ponto, a meu ver, que torna o tema um tabu: a exposição da fragilidade comunitária, onde não se poderia garantir um bom futuro a todos. Aos que não conseguiam, a punição era impor-lhes a pecha da impureza.
O tema do “tráfico de brancas” até meados dos anos de 1970 recebeu análises que o criminalizaram. Não se queria entender quem eram aquelas pessoas. Desejava-se evitar ondas antissemitas no novo país de acolhida e para tal, as comunidades judaicas se polarizaram e a ala “oficial” dividia o universo comunitário entre puros e impuros, em degenerados e pessoas de bem. A intenção dos “de bem” era ficar longe de problemas com a polícia. Os tidos pejorativamente como participantes do termo trágico do “tráfico de escravas brancas” deveriam ser culpabilizados, julgados e condenados ao ostracismo comunitário.
Entendo que retornar à temática das polacas é um ato de exorcizar demônios. Não que elas o sejam, mas é como alguns de nós as encaramos. Na conclusão de Yarfitz, que traduzo de forma livre, o autor expõe que “(...) a moralidade se transformou num campo de batalha entre os tmeim e seus oponentes, enquanto os rufiões reivindicavam respeitabilidade através da sua sociedade voluntária, as prostitutas reivindicavam vitimização quando ela servia aos seus interesses, e instituições locais e internacionais, da Ezres Noshim até a Liga das Nações, usavam reivindicações morais para moldar casamento e imigração. As trabalhadoras sexuais imigrantes empregavam o casamento como estratégia migratória, estrutura de negócios, e envolvimento romântico”. Para o autor, o “casamento como negócio” podia servir a esses três fins. “(...) Mesmo décadas depois, quando os judeus já não desempenhavam um papel significativo no submundo argentino, judeus “respeitáveis” continuaram a transformar os tmeim em bodes expiatórios, esperando com isso proteger o futuro judaico. A marca dessa história permaneceu na estrutura centralizada das instituições judaicas, na postura defensiva da memória histórica coletiva, e nos contornos das expressões argentinas de antissemitismo” (grifos meus) (p.140).
O processo histórico é maior do que circunscrevê-lo ao passado e presente argentinos. A dificuldade do autor em enxergar isto está na sua crítica ao clássico e denso estudo de Edward Bristow (1982). O autor abre o capítulo 3 inquirindo a temática dos casamentos arranjados – prática milenar das comunidades étnicas para garantir a continuidade dos matrimônios entre iguais. Yarfitz pondera que Bristow não cita nenhuma evidência documental de que os fenômenos da prostituição e do casamento não regulamentado estão causalmente ligados (p. 57). Contudo, Bristow, a meu juízo, realiza algo mais importante: expõe o vínculo entre homens e mulheres deste grupo étnico desempenhando atividades de prostituição e cafetinagem que já ocorria na Europa Oriental, onde a maior parte dos bordéis era controlada por eles. O censo de 1889 listou no Império Russo 289 licenças para prostíbulos - destes, 203, ou 70%, pertenciam a judeus. No mesmo ano, das 36 autorizações para o exercício da prostituição na cidade de Kherson, um porto do Mar Negro, 30 pertenciam a caftinas judias.[5]
Se as ponderações entre meados dos séculos 19 a meados do 20 envolviam a questão do “tráfico de brancas” à ideia da impureza, do desvio de conduta, quatro décadas de estudos publicados mundo afora, onde me incluo, me fez acreditar que teríamos vencido tamanho preconceito.
Ao ler o trabalho de Mir Yarfitz, uma pergunta me era recorrente: será que alguns historiadores compreendem as forças expressas e que compõem a formulação de um documento? O documento é a unidade de registro de informações, qualquer que seja o suporte ou o formato. Um documento contém apontamentos, intenções. Não necessariamente verdades, já que trabalhamos com discursos, não é mesmo? Documentos são expressões de correntes (em disputa) sobre um determinado fato ou evento.
A partir da ideia de que o trabalho do historiador é o de se debruçar no acervo localizado para comprovar ou não a sua hipótese, cabe a esses cientistas sociais não incorrer no engano de tomar a fonte analisada como a Verdade e sim, como uma expressão de verossimilhança. O corpus documental localizado não é o suporte para comprovar uma hipótese, mas para colocá-la em questão, em dúvida. Encontrar um acervo de consulta para uma determinada pesquisa é, igualmente, um momento de reflexão sobre como esse se formou e o quanto responde às indagações de uma análise.
A validação ou não de uma hipótese vem do entendimento das forças que construíram os documentos pesquisados. Sem isto, não há historiografia. Há análises positivistas que apenas reproduzem, sem questionar, o que está inscrito nos documentos. Se feito isto, não cumpriremos o alerta do historiador Jean Starobinski, para a crítica interna e externa ao documento.[6]
No caso específico do “tráfico de escravas brancas” há na documentação dita como oficial, um claro discurso competente de preconceito e antissemitismo. A documentação oficial expressa os valores daquela sociedade e, no caso argentino, isto é latente.
Se as forças políticas de cada momento histórico influenciam a produção acadêmica, por que o título incorpora a ideia de impuro? Nada pode ser mais xerófago do que sublinhar a ideia de imigrantes degenerados. Aceitando como o lado oficial os designou os recondena ao crime.
Neste sentido, por vezes me pergunto como exorcizar o fantasma que esta trama impõe a muitos. Recorro a lembrança do dia 27 de fevereiro de 2000, quando o rabino americano Henry Sobel realizou uma reza para as polacas e seus maridos enterrados no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo/Brasil. Faço das palavras dele o meu desejo: “rezamos hoje 'El malê rachamim' em memória das mulheres sepultadas nesta área do cemitério. Que cada uma delas descanse em paz.”
É interessante notar que a palavra cáften tem uma de suas origens possíveis nas caftas – longos casacos pretos – usadas pelos judeus na Europa Oriental. [6] Jean Starobinski, “A literatura”. In Jacques Le Goff e Pierre Nora (org). História: Novas Abordagens. Rio de Janeiro, ed. Francisco Alves, 1976. p. 132-143.