sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A prostituição ontem e hoje, no Prosa desta semana (28.11.2009)

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2009/11/27/a-prostituicao-ontem-hoje-no-prosa-desta-semana-245157.asp


Numa série de artigos publicados no jornal "O Paiz" no fim do século XIX, o jornalista Francisco Ferreira da Rosa investigou o universo da baixa prostituição no Centro do Rio, dedicando-se especialmente às imigrantes de origem judaica vindas da Europa Oriental, chamadas na época de "polacas", termo que ficou registrado nos dicionários como sinônimo de meretriz. Elas (e a comunidade que se formou em torno delas, com cafetões, clientes, policiais, médicos) eram vistas com um misto de curiosidade, preconceito e espanto pela sociedade carioca, num momento em que a cidade se expandia rapidamente e aprendia a lidar com a nova condição de metrópole.

Os artigos de Ferreira da Rosa foram reunidos no livro "O Lupanar", publicado em 1896 e há décadas fora de catálogo. Este ano, o neto do autor, Carlos Ferreira da Rosa, organizou uma reedição da obra, com tiragem caseira de 100 exemplares, doada a bibliotecas e centros de referência. No Prosa desta semana, o repórter Guilherme Freitas conversa com historiadoras e pesquisadoras sobre a importância da obra de Ferreira da Rosa como documento histórico e sobre a forma como o autor reflete a visão da época a respeito da prostituição.

A reportagem discute também o delicado debate dentro da comunidade judaica do Rio sobre como lidar com esse passado hoje, examinando a discussão sobre o futuro do Cemitério Israelita de Inhaúma, onde estão enterradas 797 pessoas ligadas à associação de ajuda mútua fundada pelas prostitutas. Tombado pela prefeitura, mas depredado e desfigurado, ele tem uma área ociosa que pode vir a ser usada para novos enterros, de acordo com um projeto dos administradores do espaço. A historiadora Beatriz Kushnir, especializada na história das "polacas", denuncia o projeto como uma tentativa de expurgo da memória das mulheres.

Paulo Thiago de Mello resenha o livro "Vila Mimosa: Etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca" (EdUFF, no prelo), resultado da pesquisa de mestrado da antropóloga Soraya Silveira Simões. No livro, Soraya descreve o complexo cenário, propício ao jogo de sedução, criado pelas prostitutas nos mais de 70 bordéis que ocupam hoje a Rua Sotero dos Reis, na Praça da Bandeira. O trabalho de campo da autora também registra a tensa relação entre as mulheres e os donos de casas de prostituição, os conflitos de interesse na disputa pelos clientes, o processo de sedução e de procura no espaço da Vila, entre outros aspectos do dia a dia da zona.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

"Pois do pó viestes, e ao pó retornarás" (Bereshit 3:19)

Haverá sempre temas que fazem nossos sentimentos transbordarem de emoção. O meu é a questão da memória das polacas, narrativa que está na minha vida desde sempre, literalmente. Hoje, numa pequena nota de canto na coluna “Gente Boa”, de O Globo, o meu fôlego desapareceu por segundos e o sangue correu quente. Nela se lê:

Dignidade polaca
O cemitério judaico de Inhaúma vai restaurar as lápides com os nomes das prostitutas polacas que foram enterradas ali. A área é tombada pelo patrimônio municipal. Em troca, será dada autorização para que novos espaços de sepultamento sejam usados. O cemitério judaico do Caju está com sua capacidade esgotada.

Venho tentando inutilmente, sensibilizar a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ) e a entidade Cemitério Comunal Israelita a recolocarem os nomes e as datas nas lápides daquele cemitério. Ao ser alertada da intenção de se murar as lápides de Inhaúma (com árvores, segundo eles) e assim “purificar” ortodoxamente o território, permitindo novos enterramentos e definitivamente condenando as polacas a párias, consegui junto à Prefeitura do Rio o tombamento do cemitério, em 2007. Cansada da soberba destes representantes comunitários que talvez se esqueçam de que o fim de todos é o mesmo, lancei uma campanha entre os meus amigos, na semana passada. Pedia-lhes que escrevessem às duas entidades citadas e solicitassem a recolocação das identidades nos túmulos. Talvez seja esta a explicação para a nota acima.

Curioso é que para nós, judeus, a mitzvá – o ato de bondade –, como enterrar o corpo de um desconhecido, por exemplo, é um dos preceitos dos mais estimulados. Ao que parece, infelizmente, para a FIERJ e para o Cemitério Comunal Israelita, há um preço para as mitzvot. Estamos ensinando aos nossos descendentes que, diferente das polacas enterradas em Inhaúma, cujo lema era “As Irmãs do Chesed shell emes” – da Caridade de Verdade, aquela que não busca a recompensa –, não se ajudará ao próximo sem levar uma vantagem nisso.

Ou seja, ou aproveitam o terreno vago, cercando as lápides existentes com “cercas-vivas” (que são muros), “purificando” o espaço e só assim, para não chocar os futuros visitantes, recolocam as identidades nos túmulos. Não recebendo qualquer lucro, não se fará essa mitzvá. Portanto, para a FIERJ e para o Cemitério Comunal Israelita, as pessoas que ali estão não são dignas de importância, preocupação e dignidade. Podem continuar, como muitas, sem matzeivá – sem uma pedra tumular –, no cimento, apenas marcadas com colorjet preto o seu primeiro nome (sem sobrenomes, é claro!).

O mais irônico de tudo isso é que o Cemitério Israelita de Inhaúma não precisa da bondade com preço, da FIERJ e do Cemitério Comunal Israelita. A última "Irmã Superiora" da Associação das polacas cariocas, Dona Rebecca, está enterrada em área nobre do lotado e concorrido Cemitério Israelita do Caju. Não há no entorno de sua lápide qualquer cerca-viva. Tornou impuro, nesta visão retrograda, seus companheiros de "última morada". A transferência dos restos mortais de D. Rebecca para o Cemitério Israelita de Inhaúma e a venda de seu espaço no Caju, tenho certeza, pagariam a recolocação das identidades de suas amigas. E, além disso, o Cemitério Israelita de Inhaúma poderia permanecer como um sítio histórico. Esse, creio, é o caminho mais justo, humano e digno.

A tradição judaica reconhece a democracia da morte estabelecendo que todos os judeus sejam enterrados com uma mortalha branca simples. Ricos ou pobres, todos são iguais neste momento final. Há quase 2.000 anos, Rabi Gamaliel instituiu essa prática e imbuída desse espírito, espero participar em breve, de uma descoberta da matzeivá coletiva, como a que o Rabino Soibel realizou para elas no Cemitério Israelita do Butantã. Naquele momento, rezaremos "El malê rachamim" em memória das mulheres sepultadas no Cemitério Israelita de Inhaúma. Que cada uma delas descanse em paz.

Para tal, nossa campanha deve ser trazer D. Rebecca do Caju para Inhaúma e fazer o que elas sempre fizeram por si: resolveram suas vidas sem pedir nada a ninguém!